Bolívia - Será o fim? E-mail
Sex, 05 de Fevereiro de 2010 23:24
04/02/2010

Uma das grandes expectativas dessa viagem recai sobre as pessoas que poderemos encontrar no caminho. Nesta etapa, que pode ser chamada de Chilena, pois estamos há uma semana em San Pedro de Atacama, não tínhamos dado ainda muita sorte. Até inventarmos uma visita rápida à Bolívia!
 
A idéia partiu de uma das atrações locais, a visita às Lagunas Verde e Colorada, localizadas no altiplano boliviano, bem próximas da fronteira com o Chile. Dois dias atrás tínhamos visitado os Geysers de El Tatio com o Pezão. Foi cruel, pois as dezenas de quilômetros em estrada de chão com milhares, não, milhões!, de mini costelas fizeram o carro tremer igual a uma britadeira. Decidimos, então, dar um folga ao Abominável Carro das Neves e ir à Bolívia de excursão. Seria bom moer um pouco o carro dos outros, pra variar! Além disso, não queríamos enfrentar duas imigrações no mesmo dia com um carro apinhado de coisas. Principalmente na volta, vindos da Bolívia!
 
Partimos cedo, de ônibus. Chegando à fronteira, o plano seria passarmos do ônibus para veículos 4x4 pilotados por bolivianos. Foi quando nos juntamos a uma escocesa e a um americano. Fomos então apresentados para o nosso guia e sua máquina... (Nota: todos os diálogos foram devidamente transcritos em portunhol, tanto o falado por nós, como a tradução das falas dos nossos guias). Primeiro, um guia com cara de organizador:
 
- Ôla?!!

- Ôla!!

- Nosotros somos para Lagunas Verde e Colorada!

- Sí!! Sí!! Por acá, por acá!
 
Chegamos então próximos às duas figuras fantásticas. Uma, um guia de cerca de um metro e meio de altura, com um semblante queimado de sol que caberia facilmente como ilustração de uma enciclopédia para “povo andino”. A outra, uma Toyota Land Cruiser azul simplesmente acabada! Parecia uma laranja só no bagaço indo direto pro espremedor pra dar o ultimo caldo! Impressionante! Ela deve ter recebido a extrema unção há uns cem mil quilômetros atrás!
 
- Ôla! Somos para Lagunas Verde e Colorada, cierto??

- Sí! Sí!! Verde e Colorada!

- Donde bãmos primeiro??

- Nossotros bãmos para a Laguna Blanca, dispois para las águas termales, geysers, Laguna Colorada e volveremos para La Laguna Verde...
 
Show!! Melhor que a encomenda! Várias atrações...
 
Durante o caminho:
 
- Amígo, como te chamas?

- Serafín!

- Ah... E... Serafín! Mucho bueno este coche... De que ano és?

- 87!

- Ah... Mucho bueno... Mucho resistente... 
 
O carro quando partiu parecia um refeitório, na qual cada peça era um membro à mesa e ninguém, simplesmente ninguém, ficava quieto. A cada jogo de costelas, que pareciam imensos sinalizadores de estrada, havia uma barulheira geral das peças como se fosse uma rajada de metralhadora! Pensei: “realmente esse carro é bom... Se agüenta vinte anos nessa labuta, nos nossos dois anos de viagem ele voltaria inteiro...”
 
Puxamos vários assuntos amenos com Serafín, tipo se tinha muitos brasileiros por lá, se estava frio ou calor, esse tipo de papo. Percebi que ele era boa pessoa e que gostou da gente.
 
Chegando em las águas termales recebi, na saída do carro, dois tapas simultâneos no peito:
 
- Ostê asse cair em las águas termales!
 
Fiquei satisfeito com a demonstração de afeto! Percebi que o Serafín realmente tinha gostado de nós. De certa forma já estávamos mais unidos do que a maioria das peças do carro dele!
 
Seguimos adelante e visitamos tudo, até a Colorada. Um cenário fabuloso, que novamente vale mais ver as fotos do que falar... Principalmente os geysers! Realmente estávamos dentro de um vulcão, com o chão derretendo em cheiros de ovo cozido e uma lama efervescente cinza que parecia chumbo derretido! Fantástico! 
 
Porém, durante o caminho o nosso amigo Seráfa ficava fazendo certos movimentos estranhos, umas guinadas olhando pra trás, tipo cinco horas (imagine um relógio de ponteiro às cinco horas), e dava umas buzinadas sem o menor sentido. Olhei para ele e vi uma bochecha enorme, quase uma caxumba unilateral.
 
Baixinho:
 
- Du, qual o nome do figura mesmo?!

- Serafín!

- Ah! Isso mesmo!
 
Depois, alto:
 
- Ôla, Serafín! Estás coqueando??

- Sí! Sí! Claro!! Para manter-me acordado!
 
Pensei: “essa coca do Seráfa está malhada... O cara está meio esquisito!”
 
Chegamos na Laguna Colorada sem problemas, milhares de flamingos e nenhuma ocorrência. A não ser o Serafín se afastando pra mandar o número dois... Mas, tudo bem.
 
Na volta o clima que se instaurou foi de tranqüilidade. O fato de voltarmos pelo mesmo caminho, aliado ao cansaço, estava convidativo até para uma pestana. Paramos para almoçar. Na saída, Seráfa virou a chave e... nada! Nem sinal! O novão estranhamente fraquejou. Por sorte havia companheiros de profissão na área para tentar uma chupeta. Abrimos o capô. Presenciei uma cena bizarra, com três bolivianos conectando baterias com cabos finíssimos apertados contra os pólos com os próprios dedos! Realmente Deus é boliviano! Obviamente,... não pegou! Seráfa ficava entrando e saindo do carro feito louco e gritando: “puta mierda! Puta mierda!!”. Fazer o que, então? Empurrar! Óbvio! Aí, pegou no estalo. O carro realmente és mui resistente!!
 
Fomos então em paz... Quis puxar mais uns assuntos com nosso guia, piloto, eletricista...
 
- Du, esqueci o nome dele de novo...

- Serafín! Lembre de “Será o fim?!”

- Boa!
 
Falamos mais amenidades, entre guinadas e buzinadas! Percebi então que as buzinadas eram para testar a parte elétrica!! Era um sistema de busca por falhas elétricas extremamente sofisticado! Nessa hora vi que o volante ficava de cabeça pra baixo. Não exatamente de cabeça pra baixo, mas um pouco torto, pra aumentar o requinte! Aliás, o painel era fantástico! Desde o Pateta vestido de Papai Noel, passando por uma coroa tipo carnavalesca, até a foto de uma peituda com as pernas de fora... Isso tudo coerentemente colocado próximo a uma figura da Nossa Senhora e mais alguns badulaques! Hilário!
 
Nossa aventura estava só começando... Em uma das guinadas para trás, aquelas das cinco horas, Seráfa veio com os olhos mais esbugalhados do que a média! Preocupei... Ele pisou no freio e saiu do carro em direção à minha porta, a traseira direita! Quando abri, vi a cena: o pneu totalmente estourado e roda na areia! Serafín: “- Mira o que aconteceste!!”
 
O pequeno guia começou a correr igual a um louco, pegando o macaco e catando pedras pra calçar o carro! Resolvi botar a mão na massa e subi no teto do carro para pegar o estepe. Olhei para o estepe e ele tinha o mesmo número de cabelos que os demais: zero! Completamente careca! Acho que eram todos originais do carro! Arremessei o estepe para baixo e o pneu foi trocado rapidamente.
 
Pneu trocado... E para virar o carro?!... Virou! Realmente mui resistente! Seguimos caminho em uma corrente positiva para que mais nenhum pneu furasse. Não demorou muito e o carro foi diminuindo a velocidade! Por que será que o Seráfa tá parando?... Parando nada! O motor havia morrido e na falação das peças ninguém percebeu! Em meio segundo ele estava mergulhado no capô. Mais meio e ele estava embaixo do carro. Saí pra ver que se passa...
 
Voltei e a Du perguntou:
 
- O que houve?!

- Acabou a gasolina!

- Como você sabe?!

- O filtro é transparente e tá vazio!

- E aí?!

- Sei lá! Dançamos!
 
Olhei pro Seráfa e ele tava de novo no capô:
 
- Acabaste la gasolina?!
 
Sem resposta. Quando percebi, ele estava com uma garrafa pet com meio litro de gasolina apoiada estrategicamente ao lado da bomba de gasolina. Ficou claro, então, que não tinha acabado a gasolina, e sim pifado a bomba. O mais engraçado é que nessa hora eu vi que a garrafa pet tinha umas presilhas de borracha já preparadas, e ela ficava precisamente apoiada em um lugar apropriado. Percebi claramente que isso já devia ter acontecido inúmeras vezes, e o “bacalhau” era mui tradicional!! Fiquei mais tranquilo. Esse cara sobrevive ajeitando esse carro há anos! Não iria falhar hoje. 
 
Tivemos mais duas paradas! Uma pra reposicionar o sofisticado sistema auxiliar de alimentação de combustível e outra porque a garrafa pet arrancou o cabo da bobina. Mas aí já estávamos tão acostumados que ficamos numa boa. Até porque estávamos bem perto, e, no aperto, dava pra ir a pé! A não ser a escocesa, que a cada parada do carro ficava fazendo figa e beijando a máquina fotográfica como se fosse um terço. Isso em meio a rezas de “don't stop, please! Don’t stop!”.
 
Chegamos próximos da fronteira e passamos para uma Hilux zerada para voltarmos ao Chile. Ela era certamente mais nova, mas não tinha a décima parte do brilho da velhaca Toyota azul. Muito menos do seu piloto! Mérito para todos nós, que conseguimos manter o bom humor e achar espaço para, ao invés de reclamar, dar uma gorjeta extra para ajudar o sacrificado Seráfa a manter seu possante e seu ganha-pão.
 
Decididamente não foi o fim! Chegamos de volta e fui pedir as devidas desculpas para o Pezão pela admiração momentânea à Toyota. Ainda há muito pela frente!


 
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