DIÁRIO DE BORDO África Quênia O princípio da África dos sonhos pelas péssimas estradas do Quênia

O princípio da África dos sonhos pelas péssimas estradas do Quênia E-mail
Seg, 24 de Janeiro de 2011 11:55
29/11 a 08/12/2010

O lado queniano da cidade de Moyale acabou nos surpreendendo positivamente. Para variar, arrumamos um hotel e fizemos dele o nosso acampamento. Tivemos direito à cozinha improvisada na sacada, valendo, inclusive, apreciar a vista, que incluía a área dos fundos de uma casa extremamente simples com uma cabra amarrada em uma pilastra de madeira.

Acordamos cedo, aproveitamos o que foi possível do estranho café-da-manhã e zarpamos rumo ao desafio das estradas. Pouco depois das oito da manhã estávamos à porta da cidade perguntando a uma policial qual era a condição da estrada. Depois de um “Péssima!” simples e contundente, respiramos fundo e aceleramos.

Algo sistemático vinha ocorrendo na nossa viagem: as previsões pessimistas nunca se concretizavam. Os locais foram, invariavelmente, mais seguros do que nos falavam, mais fáceis de atravessar do que nossas pesquisas diziam e menos ermos do que achávamos. Assim, ainda tínhamos a esperança de que a estrada que tínhamos pela frente não seria tão ruim. Para o nosso azar, era exatamente como os viajantes a descreviam: um caos. A mistura de terra batida com pedras salientes criou um mecanismo de efeito similar a quatro britadeiras no Pezão, uma em cada roda. Não podíamos andar com o pneu muito cheio, porque trepidava o Pezão de tal forma que parecia que as peças começariam a debandar em uma espécie de motim generalizado. Tampouco podíamos esvaziá-los muito, porque não demoraria para que uma das “bochechas” dos pneus recebesse um belo beliscão de uma pedra e mandasse tudo pro espaço. A solução foi: meia pressão nos pneus e paciência a toda.

Seguimos em segunda e terceira marchas, em uma velocidade média de trinta quilômetros por hora. Durante a manhã o tempo passou rápido. A estrada era tão ruim que chegava a ser interessante. Acabávamos nos divertindo com nossos sacolejos e, principalmente, com a velocidade com que os carros, caminhões e ônibus nos ultrapassavam. Um espanto! Os loucos varridos andavam com o dobro da nossa pressa, sem nenhuma pena do veículo. Como seria possível esses carros aguentarem?! A resposta veio na beira da própria estrada com a coleção de veículos parados. Suspensões no chão e diferenciais nas mãos eram tão freqüentes como as nuvens de poeira levantadas minutos antes. Passávamos direto, dávamos um aceno e continuávamos em nosso devagar e sempre.

Na hora do almoço, atravessávamos uma das piores partes, um deserto interminável de pedras negras e agressivas, quando paramos para dar um tempo e para comer algo. O vento incessante nos estimulou a ensaiar a preparação da comida dentro do carro. Esse procedimento seria necessário nos parques recheados, até onde esperávamos, por leões famintos e comedores de gente. Preparamos uma Liofood no capricho e, em menos de meia hora, estávamos de volta à nossa batedeira.

A trepidação e os gemidos do Pezão eram tantos que praticamente não conseguíamos conversar. A paciência vinha sendo drenada à metade a cada dúzia de quilômetros. Estávamos a meio caminho da cidade onde dormiríamos, Marsabit, e o sofrimento dava a impressão de que seria até suportável. Mas estávamos subestimando o efeito acumulativo do tempo. Depois de cinco horas nessa tortura, o pé do acelerador começa a pesar naturalmente, no afã de se chegar ao destino. Aí, vieram as primeiras grandes pancadas nas rodas e a sensação de que era uma questão de tempo até o Pezão arregar e parar. Seja por um pneu furado ou por uma mola quebrada, não parecia ser possível agüentar tanto soco durante um dia inteiro. Foi então o momento de respirar, olhar para o relógio, recalcular o tempo até o pôr-do-sol e reduzir novamente a marcha.

A visão do entorno permanecia tristonhamente precária. Os barracos feitos de “lixo” continuavam abrigando o povo local e, para nosso espanto, eram ainda mais arrasados do que na Etiópia.

Estávamos há oito horas quase ininterruptas desse esquisito passeio e ainda não víamos a linha de chegada no horizonte. Seguíamos testando a nossa resistência física e a mecânica do Pezão. Nas paradas para o “banheiro” aproveitávamos para dar uma fiscalizada nas porcas e parafusos e observamos, enfim, as cicatrizes daqueles que estavam realmente dando duro naquele dia: os pneus. Eles pareciam como novos até o dia anterior. Eram dignos até de comentários de quem os via nas suas brilhosas aparências. Olhando novamente para eles, com os cravos rachados e lanhos por todos os lados, ficava claro o quanto de vida eles estavam deixando para trás nesses primeiros quilômetros do Quênia. Ao mesmo tempo, olhando para o Pezão com o motor ligado em sua constante e precisa marcha lenta, sem aparentar qualquer sinal de esmorecimento ou covardia, ficava claro de que ele estava mais em casa do que nós.

Depois de mais duas horas na mesma sintonia trepidante, chegamos a Marsabit. O sol começava a se pôr, e os números do GPS traduziam o desafio. Tínhamos rodado por mais de nove horas para transcorrer cerca de 250 quilômetros. Estávamos totalmente moídos. Entramos quase ao anoitecer no nosso hotel e conhecemos dois irmãos que estavam fazendo a mesma rota de moto. Não tiveram tanta sorte: uma das motos quebrou por causa de um parafuso que se soltou devido à trepidação. Eles estavam em uma sinuca de bico para resolver o problema no meio do nada ou para enviar a moto para Nairóbi. Tentamos ajudar no que fosse possível, o que obviamente não era muito, e fomos dormir. Dei uma olhada de boa-noite para o Pezão com um sorriso no melhor estilo “boa, garoto!”.

Tínhamos ganhado uma batalha chegando inteiros a Marsabit, mas não tínhamos ainda ganhado a guerra. Estávamos exatamente no meio do caminho. Tínhamos, pela frente, outros 250 quilômetros tão ruins quanto os primeiros. A projeção de como estaríamos ao final do dia era assustadora de tão pessimista. Para piorar, ainda não estávamos no melhor da nossa forma física e realmente não precisávamos dessa academia de alta freqüência. Mas, ficar em Marsabit tampouco nos agradava, então o jeito era encarar.

Focando na mesma estratégia de começar bem cedo, saímos acompanhados pela neblina matinal novamente rumo ao sul. Nosso espírito estava mais elevado pela manhã. Nada como começar o dia após uma boa noite de descanso e após uma boa notícia: ao que parecia, estavam asfaltando a estrada. Sendo assim, boa parte dos quilômetros daquele dia poderiam ser rodados em uma estrada novinha em folha. Não sabíamos exatamente onde, por isso preferimos não ficar aguardando o asfalto como o pote de ouro atrás do arco-íris e seguimos como se fosse um dia igual ao anterior.

Na saída da cidade, o de sempre: um posto policial fechando a estrada com um bastão de ferro no chão cheio de pregos pontudos para cima, parecendo uma arma medieval. Até aí, tudo bem. Paramos em frente ao artefato de guerra e nos pusemos a esperar a usual abertura arrastada. Foi quando fomos abordados:

- Bom dia! Estão indo para onde?

- Bom dia... Rumamos para Isiolo.

- Pois é... O problema é que esse trecho da estrada é muito perigoso. Tem muita bandidagem por aí. Vocês não vão poder ir sozinhos.

Nessa hora foi fácil observar que outro carro e um ônibus igualmente esperavam estacionados.

- Vamos preparar um comboio com uma escolta. Vocês terão que esperar e ir junto.

Todo esse papo estava profundamente parecido com os estilos etíope e egípcio de criar perigos para vender segurança. Assim, tentamos insistir para irmos em frente sozinhos mesmo. O nosso “salvador” então retrucou:

- Estou preocupado com a vida de vocês! Vocês não se preocupam com suas próprias vidas?!

Diante de tão fraterno argumento, sucumbimos à nossa proteção e nos colocamos a esperar. Enquanto esperávamos, e a Du guardava as câmeras e outros objetos de valor, comentei com o motorista do ônibus sobre a questão da velocidade. Falei que íamos bem devagar e mostrei preocupação de como isso se daria em grupo, pois nenhum ônibus que víramos até aquele momento andava a menos de oitenta por hora. Ele mandou: “Comboios sempre vão na velocidade do mais lento!”. “Ah, que bom!”, fiquei mais tranquilo.

Pouco mais de meia hora da nossa chegada, aterrissou outro carro para ser escoltado. Agora, ao que parecia, só precisávamos aguardar a escolta em si, pois o comboio estava pronto. Mais cinco minutos e eu continuava aguardando fora do Pezão, curtindo o frio da manhã, quando vi alguém abrir o “portão”. Foi com certo espanto que vi um carro meio marrom passando batido por nós e seguindo estrada afora. Fui até o Pezão e falei para a Du: “Sacanagem... Esse carro pode ir sozinho e nós não!”. A Du mandou: “Acho que esse carro era da polícia. Não seria essa a tal escolta?”. Vendo que um magrelo de farda fechava novamente a passagem, falei: “Não deve ser não... Estão fechando de novo a passagem...”. Pra quê?! Meio minuto depois aparece nosso “salvador”, meio esbaforido, gritando: “É a escolta! É a escolta! Sigam aquele carro!”. “Como assim?!”, pensei. “O cara passou há quase um minuto e completamente chutado! Nós nunca vamos alcançá-lo!”.

Depois de um ridículo empurra-empurra entre os carros, conseguimos sair. Nós em terceiro e o ônibus por último. Durante cinco minutos tentei acompanhar os dois carros da frente, porém, depois de ver uma reta de quase um quilômetro sem nem poeira da nossa dita escolta, e de meia dúzia de doídas pancadas no Pezão, desistimos. “Que porcaria de comboio é esse?!”, gritamos.

Decidimos ir sozinhos mesmo. Esses imbecis desses policiais só conseguiram duas coisas: atrasar-nos em mais de meia hora e nos assustar. Andamos pelos tais quarenta quilômetros mais perigosos extremamente alertas e tensos. E o mais aborrecedor foi que passamos por povoados extremamente interessantes, com rostos e vestimentas totalmente inéditos para nós, e a câmera da Du ainda se escondia no fundo da bagagem...

Sacudimos por horas suficientes para concluir que nada violento aconteceria. A Du sentiu a presença da confiança e pegou a máquina a tempo de registrar uns garotos trajados de forma extremamente pitoresca. Eles queriam insistentemente ganhar uma carona na direção em que íamos, mesmo que para isso tivessem que ir acochambrados em cima da geladeira ou empoleirados no estribo lateral. Decididamente seria uma péssima idéia. Aceitaram, ao menos, tirar algumas fotos em troca de umas balas.

Pouco mais de três horas depois de ganharmos e perdermos nossa escolta, avistamos, ao longe, a sonhada abrupta mudança de cores da estrada. Ao invés dos malhados tons de areia e pedra, o azul do tapete. Chegamos ao asfalto! Foram exatos 370 quilômetros percorridos em onze horas e dez minutos, em uma incrível média próxima dos 30 km/h, praticamente sem pararmos. Olhei paternalmente para o Pezão enquanto enchia, satisfeito, os pneus. Fiquei por alguns minutos observando os contornos daquele carro, admirando a robustez das suas peças. É realmente um carro muito forte. Sabemos que à frente ainda encontraremos mais dificuldades, mas foi muito bom vê-lo passando por momentos tão difíceis sem se abalar.

Aterrissamos em Nairóbi e ficamos com a sensação de estar chegando a Nova Iorque. Ruas asfaltadas, e sem areia!, prédios concluídos e carros que podiam suportar as próprias peças. Depois de tanto tempo em terras precárias, aquela pincelada de civilização desceu redonda. Paramos em um camping muito bem mantido por europeus e conhecemos diversos overlanders. Um deles foi o casal Barry e Valerie, do projeto Africa Minded. Eles são gente finíssima e já vínhamos nos comunicando pela internet. Os seus textos são fantásticos e as fotografias indescritivelmente boas. Pena que eles diminuíram o projeto e já estavam programando a volta.

Aproveitamos a parada em Nairóbi para irmos ao supermercado. Quando chegamos a um pequeno Shopping Center e entramos no supermercado, passamos a ter certeza que estávamos em Nova Iorque! As longas prateleiras eram uma incrível diversão para o casal cansado. Iogurtes, queijos, peitos de frango, saladas, ou seja, perecíveis em geral, eram luz para nossos olhos. Compramos de tudo! “Finalmente vamos sair do pão, arroz e macarrão!”, festejamos. Quando aparecemos no camping com aquela quantidade de sacolas em mãos, tivemos que ouvir as brincadeiras dos simpáticos hóspedes dizendo que não caberia tudo no carro. Porém, meia hora de trabalho depois, o Pezão mostrou que é igual coração de mãe e nenhuma sacola ficou sem lugar. Mostramos, orgulhosos, o chão vazio para os nossos vizinhos.

Depois de quatro noites de descanso, boa comida e alguma manutenção no Pezão, partimos em direção ao nosso primeiro parque africano, o Masai Mara. Localizado a sudoeste de Nairóbi, esse parque é o pedaço queniano do famoso Serengeti, da Tanzânia. Ao final do dia, após alguns quilômetros de asfalto e outros poucos de terra, onde a região mostrou todo o seu potencial de diversão quando paramos para ver, à beira da estrada, ainda fora de qualquer parque, uma manada de girafas com cerca de vinte animais, chegávamos à cidade de Talek, localizada em um dos portões do parque. O dia seguinte estava ansiosamente reservado aos leões, hipopótamos, elefantes e outros animais símbolos do continente africano.

Acordamos pouco depois das seis horas e preparamos nosso café e os equipamentos de foto e filmagem em meio a certa euforia. Pouco depois das sete apontávamos no portão do parque. O dia estava claro, apesar de algumas nuvens no céu. A entrada foi especialmente agradável, pelo clima fresco do ar da manhã e pelas expectativas. Após mais de meia hora de direção, porém, começamos a ficar ansiosos, pois nada muito interessante tinha aparecido. Somente alguns pequenos antílopes sem muito movimento. Olhos fixos no horizonte, a Du finalmente gritou: “Elefantes!”. Aqui na África tem uma história do tal dos Big Five. São, teoricamente, os animais que melhor representam o continente, ou os mais perigosos, algo assim.  Não participamos dessa eleição. O ponto é que os elefantes, junto com os leões, búfalos, rinocerontes e leopardos, formam uma espécie de elite do que você deve conseguir ver e, se perder um desses, é praticamente como não ter vindo por essas bandas. Ficamos eufóricos com os primeiros elefantes avistados e por podermos reduzir para quatro a nossa meta. O coração bateu mais forte e finalmente nos aproximamos a pouco mais de cinco metros.

É uma sensação realmente diferente, que faz valer a pena qualquer esforço para se visitar a África. Observar um animal em seu ambiente natural, com seus sempre presentes filhotes, se alimentando da forma como assim o fizeram por milhares de anos, faz cair para abaixo da terra qualquer resíduo de proveito que pode haver em um zoológico. Esses elefantes, assim como todos os demais que veríamos à frente, em nada remetem às nossas lembranças dos cabisbaixos, ora inquietos, ora prostrados, mas sempre abatidos animais enjaulados. Ficamos por quase meia hora observando as gigantescas orelhas e trombas e a Du “sentando o dedo” na máquina.

Aliviados com a sensação de que começávamos a aproveitar a visita e de que nossa sorte estava presente, seguimos dirigindo e procurando. Pouco mais de vinte minutos depois, após cruzar um rio, demos de cara com uma leoa agachada, na posição de ataque. Peguei a filmadora e a Du a máquina. Nisso, avistamos outras três felinas à espreita, além da sempre presente hiena à espera do fim da festa. Estava claro que veríamos alguma ação.

Avistamos também outro carro mais ao longe, com um equipamento de filmagem digno da National Geographic. Resolvi nos reposicionar para conseguir chegar mais perto, ainda sem saber o que exatamente as bichanas queriam, quando o cara da Nat Geo começou a balançar freneticamente os braços, em um legítimo “esporro” à distância, nos falando para voltar. “Ah, o cara não quer a cena da leoa caçando com um imenso animal branco de metal ao fundo... Até que seria engraçado!”, rimos. Demos marcha à ré e paramos quando o figura parou de balançar os braços como um pássaro que tentava alçar voo.

Não demorou muito e uma das leoas deu uma agachada atrás de uma pequena moita e fez aquela pose de gato de estimação prestes a atacar a bola de papel. “Vai correr!”. Ainda não víamos a presa, mas não iria demorar muito. Ela partiu! Durante poucos segundos, vimos e filmamos a leoa perseguir energeticamente um pequeno filhote de javali. Bem pequeno mesmo, do tamanho de uma bola de futebol. Ele correu da leoa em um zigue-zague desesperado e não tivemos tempo para escolher o lado a torcer. O novo, e salvadoramente ágil, porquinho se enfiou na toca e se safou! Fantástico! Assim que a leoa parou em cima da toca e olhou para trás, chegaram os filhotes. O café-da-manhã não estava ainda servido, mas foi melhor assim – era muito pouca proteína para uma vida inteira perdida. Melhor procurar caça maior.

Ficamos ainda alguns minutos observando esse primeiro grupo de felinos que vimos. Os leões são de uma beleza impressionante. O brilho do pêlo e a musculatura chamam a atenção imediatamente. Uma jovem leoa, um pouco mais magra que as demais, passou exatamente em frente a nós enquanto se juntava ao grupo. Foi especial.

Seguimos mais empolgados ainda. No lado oeste do parque, passamos horas entre as pequenas trilhas vendo inúmeros antílopes, zebras e girafas. Algumas clareiras na mata chegavam a juntar todas as espécies, em uma espécie de condomínio de comida de leões. As fotos ficaram fabulosas.
Pouco depois, avistamos dois carros parados próximos a um arbusto. Não havia dúvidas de que se tratava algo novo. Quando nos aproximamos, pudemos ver: duas chitas, os mais rápidos felinos do mundo, tinham acabado de realizar uma bem sucedida caça e, para elas, era hora do almoço. Paramos novamente bem próximos e observamos por alguns minutos. Uma estava deitada à sombra da árvore, visivelmente saciada, enquanto a outra só parava de morder para atender à ainda ofegante respiração e posar para as fotos da Du.

Acabamos por nos aproximar do Rio Mara, sem grandes pretensões. Vimos as pequenas orelhas de um hipopótamo e nos espantamos com a quantidade de gnus na outra margem. Eles estavam alvoroçadíssimos, mugindo sem parar e com os olhares fixos no rio e na nossa margem. Quando olhamos com calma, vimos que a quantidade era fabulosa. “Eles vão cruzar o rio!”, exclamamos em conjunto.

Mas seria algo totalmente imprevisto. Tínhamos pesquisado e já sabíamos que não era a época da migração dos gnus que vêm do Serengeti, na Tanzânia, para o Masai Mara. Mas o que esses malucos estavam fazendo ali?! Na dúvida, nos pusemos a esperar, bem ao lado de uma das vias visivelmente marcadas por patas anteriores. Eles chegaram a uma tal tensão que imaginamos que ia acontecer. Ficamos com as máquinas a postos aguardando ansiosos. Em pouco tempo, havia mais de meia dúzia de carros na mesma espera. Começamos a perguntar aos guias e não havia uma unanimidade de porque estava acontecendo aquilo fora de época e se eles iam ou não atravessar. O fato é que, se acontecesse, seria uma baita sorte. As imagens da caça dos crocodilos durante a travessia e a possibilidade de presenciar esse evento nos deixava elétricos. Mas a tensão nos olhos deles deixava claro que aquela passagem não era algo que os agradava. Ainda mais fora de época!

Depois de quase uma hora de espera começamos a desanimar. Rimos um bocado gritando aos gnus chamando-os de frouxos. Como pode?! Ficar com medo de uns crocodilozinhos de nada... Desistimos por hora e continuamos o passeio. Depois voltaríamos para checar. Na saída, uma guia nos abordou: “Conseguiram ver os ‘gatos’?”. “Vimos leões e chitas, mas não vimos o leopardo!”. “Ah, o leopardo está fácil: siga acima daquela colina e, quando encontrar uma via principal, siga adiante. Depois vá olhando para sua esquerda. Não tem erro! Ele está ao pé de uma árvore, e a presa em cima dela!”. “Excelente! Muito obrigado!”.

Partimos felizes da vida, porque iríamos “facilmente” ver o leopardo. Antes de subir a colina, vimos um leão sob a sombra de uma árvore. Novamente comemoramos e nos aproximamos. Era um jovem leão em um sono profundo, no melhor estilo “domingo à tarde”. Tiramos fotos fantásticas do sono dele. Depois que a Du já tinha tirado fotos de todo jeito mandamos, meio encabulados pela vergonha de atrapalhar a natureza, uma idéia no bichano tipo: “Fala aê, parceiro! Beleza? Desculpe interromper o sono, mas dá pra dar uma acordadinha rápida e fazer umas poses pra foto?” Ele levantou somente um olho, nos viu, nos ignorou, e voltou a dormir de barriga para cima, mostrando toda a sua fúria de predador das selvas.

Subimos a tal colina tentando seguir as indicações. Depois, começamos a olhar nas árvores... Nada! A quantidade de árvores era absurda. “Como vamos achar A árvore que está o peludo?”. Continuamos procurando... Nada ainda! Demos meia volta, volta e meia, e... Bulhufas! “Ah! Pro escambau com essa história de procurar uma árvore no meio da floresta! Parecemos uns idiotas! Que guia maluco!”, praguejamos.

Saímos à procura de mais alguns hipopótamos, sem muito sucesso, e novamente acabamos dividindo o caminho com uma quantidade monumental de zebras e antílopes. É uma fauna fabulosa. Rodamos iguais a uns alucinados, sem ver se tinha trilha embaixo da gente ou não. Voltamos aos gnus e pudemos ver a dispersão geral do evento. “Eles pipocaram feio!”. Paciência...

Começamos a circular o parque, indo em direção ao lado leste. Pouco mais de vinte minutos, vimos mais uma juba: “Aêêêêê!”, outra festa. Emburaquei o Pezão na trilha que levava para a família de felinos e conseguimos chegar muito perto. Eram quatro leoas, juntas em um pequeno monte verde, e três leões, um deles com cara de chefão e outros dois aparentando pouca idade.

Ficamos observando e fotografando por algum tempo aquela família de imensos gatos, totalmente indiferente à nossa presença e fazendo o que fazem a maior parte do tempo: chapar. Depois de alguns minutos, o local foi premiado com um pequeno filhote. Um pouco de movimentação, e muitas fotos mais, foram adicionados ao pacato ambiente.

Seguimos finalmente para o outro lado do parque, mas já sem o mesmo pique do início. O dia tinha sido incrível, mas cansativo. Um vento fortíssimo entrou sem piedade e trouxe nuvens assustadoras. O dramático céu iria cair em pouco tempo. Saímos do parque inundados em nossos próprios comentários sobre a experiência. Tínhamos novamente a sensação de que viajáramos todo esse tempo para estar exatamente ali, com aquela natureza.

Estar em um parque desses nos trás, inevitavelmente, algumas sensações e outras mudanças de formas de vista. Primeiro, a breve idéia do que é a África selvagem. Por menor que seja o parque, após uma hora rodando de carro savana adentro, a sua sensação é de perfeita imersão. Apesar das trilhas, que teimam em lembrar a presença humana, esse contato é certamente suficiente para entender como a vida vem ali se desenrolando através dos milênios, em uma batalha pela vida e pela perpetuação das espécies. Segundo, uma total mudança no que se vê de mais fantástico em mídias como National Geographic e Discovery Channel. Para mim, em se tratando dos animais presentes nesses parques, o fabuloso trabalho de registro dessa natureza está mais ligado à paciência e obstinação do que necessariamente isolamento e perigo, que eram elementos de uma percepção anterior. Mais difícil do que estar no ambiente desses animais é possuir a arte da espera e a técnica do registro. Obviamente isso não generaliza todos os trabalhos, mas acredito que uma boa parte deles. É como se eu conseguisse ver com outros olhos algumas cenas televisivas de caça implacável, só que agora com o Pezão quase aparecendo ao fundo, fazendo “merda”.

A chuva despencou à porta do parque e fomos para o nosso hotel. Entramos no nosso quarto cobrindo as cabeças e fomos direto ao banho, com direito à água mais barrenta que se possa imaginar saindo de um chuveiro. Varremos a terra do chão do banheiro, comemos no nosso sempre presente acampamento no quarto e fomos dormir, com as imagens do dia passando como um show de slides em nossas mentes. Era a África dos sonhos pregada em nossas retinas.

A chuva desmoronou feio durante a noite, o que garantiu uma saída extremamente enlameada da cidade. Após sairmos do vilarejo, percebemos que não iríamos encarar somente uma laminha suficiente para sujar o Pezão. Já no início percebemos que a estrada estava próxima de se tornar intransitável. Seguimos por algumas dezenas de quilômetros tensos com cada lamaçal a ser atravessado. Estávamos praticamente sozinhos, aparentemente ninguém estava se atrevendo a passar por ali naquela manhã molhada. Depois de algumas poças inacreditáveis e de alguns desvios imprescindíveis, vimos que nada iria nos parar, então fomos mais à vontade até atingir o asfalto.

Dormimos em uma cidade longínqua, em um hotel afastado, contando apenas com um remoto lava-rápido para tirar a capa de terra do nosso companheiro. O dia seguinte era dia de fronteira.

A visita ao Quênia foi, novamente, especial. Péssimas estradas no norte, refresco em Nairóbi e lama no sudoeste, tudo muito diferente. Mais uma vez o sofrimento da população nos levava a refletir. Mas nada brilhou tanto como o Masai Mara, nosso primeiro parque. Seus animais e suas estréias em nossas vidas dificilmente serão superados por outras experiências na região. E olha que tínhamos pela frente, como próxima parada, a Tanzânia e o mais famoso de todos os parques, o Serengeti. Nada mal...




 
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