DIÁRIO DE BORDO Ásia Síria Síria: Ahlan Wa Sahlan!

Síria: Ahlan Wa Sahlan! E-mail
Seg, 18 de Outubro de 2010 17:03
29/09 a 06/10/2010 

Ahlan Wa Sahlan
! Seja bem-vindo! Nenhuma expressão pode refletir melhor a nossa estadia na Síria. Mais do que a ouvir praticamente todo o tempo, principalmente na universal forma “Welcome to Syria”, o povo sírio nos mostrou que possui a hospitalidade enraizada em sua cultura.

Toda a nossa apreensão em entrar no Oriente Médio evaporou quando começamos a receber os primeiros sorrisos e cumprimentos. O clima de amizade e segurança reinou por todos os cantos de areia que passamos nesse país. Após mais de trinta países visitados, podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que os sírios foram o mais receptivos.

A passagem pela fronteira correu sem problemas. Na verdade, somente os problemas corriqueiros de bordas de países: burocracia, taxas, despachantes, taxas, seguros, taxas... Nessas horas, temos que abraçar o prejuízo e seguir adiante. Uma das taxas na Síria é bem cara: pagamos cem dólares para ficar com o Pezão uma semana no país. Essa taxa somente é cobrada para carros a Diesel, mas seu valor acaba sendo compensado pelo baixo custo do combustível: menos de cinqüenta centavos de dólares por cada litro.

Avançamos rumo leste, na direção de Aleppo. A paisagem tornava-se cada vez mais árida e interessante. O entusiasmo ia às alturas quando passávamos pelas primeiras placas de sinalização escritas em árabe. Algumas, sem a tradução para o inglês, faziam-nos sentir completamente analfabetos.

Chegamos ao camping, afastado cerca de trinta quilômetros do centro da cidade, e fomos bem recebidos por uma belga, chamada Cristal. A tarde ainda estava no início, então decidimos ir ao centro de Aleppo para aproveitar o tempo naquele dia e começar a entender a cidade. Cristal nos convenceu a deixar o Pezão e ir de van: como certamente teríamos dificuldades em parar o carro, o transporte coletivo seria a melhor opção.

Fomos para a rua e começamos a aguardar. Observando os carros passando, e tendo a companhia de um acanhado menino, nosso vizinho da frente, era possível observar o quanto o clima das pessoas era leve, e o quanto a Du paralisava ainda mais os olhares. Ao invés de melhorar, piorou! “Acho que precisamos comprar uma burca!”, pensei...

Paramos a primeira van aos gritos de “Halep! Halep!”, a forma como eles pronunciam Aleppo, e entramos. A van estava lotada, então eu e Du sentamos frente a frente, bem próximos à porta. O motorista sorriu e começou a dirigir. Estávamos realmente no subúrbio de Aleppo, e o nosso trajeto até o Centro demoraria algo como quarenta minutos em pequenas e movimentadas estradas de mão dupla. Até a terceira marcha da van, tudo bem. Aí, veio a quarta e a quinta, e o motorista continuava acelerando. A Du estava de costas, o que aumentava sua sensação de velocidade e seu desespero. O cara ia freando, acelerando e buzinando igual a um alucinado. Que saudades do Pezão!

Eu olhava por entre os ombros encolhidos e os olhos esbugalhados da Du que, nessa hora, cravava as unhas na minha perna, e dirigia junto com o piloto. Ficava gritando internamente: “ah, olha aí! Cuidado! Ih, bateu... Freia! Ah, morremos!”. Que sinistro! O cara me fez rever totalmente meu conceito de motorista maluco!

Mas, como ser humano se acostuma a tudo, consegui voltar a respirar e comecei a olhar em volta. A van era um poço de tranqüilidade... Ninguém se preocupava com as sacudidelas e alguns quase dormiam... Na verdade, só alguns. Após me recompor, consegui perceber o sofrimento do cara que estava ao lado da Du. O figura, que compartilhava o mesmo banco dela, simplesmente não se continha. Ele olhava para a Du com olhos fundos, passando por cada detalhe: rosto, mãos, pés. Com o meu olhar para ele, rolou uma disfarçada. Porém, meio segundo depois, não agüentou e voltou a olhar. Ele tinha a mão apoiada no banco, a uns quinze centímetros de onde a Du sentava. Ele olhava para a própria mão e eu percebia o quanto aquilo para ele era impactante. Desisti de encarar ele, visto que não fazia efeito, e olhei para o lado. O motorista tinha movido o retrovisor e fitava o cangote da Du. Os dois, que estavam ao lado dele, viravam para trás a toda hora e ficavam rindo e fofocando em árabe... Nisso o cara fez mais uma manobra arrojada e, entre freadas e buzinadas, sacudiu toda a van. E o cara do lado da Du quase tendo um colapso... Que passeio! Motorista louco e passageiros tarados! Olhei pra cima, com todo o respeito, e pensei: “Alá, se você anda mesmo por essas bandas, eu tô nas suas mãos...”.

Chegamos! Perguntamos, na base da mímica, e de algumas palavras potencialmente parecidas, onde ficava o centro antigo. Nisso, um senhor que estava na van, não no time que olhava a Du, e sim no que dormia, se ofereceu para nos guiar. Não sabíamos exatamente para onde, pois não tínhamos certeza se nos fizemos entender, mas fomos assim mesmo. Ele ia a passos lentos, com um sorriso leve no rosto, e nós atrás. Nesse momento, ainda não conhecíamos o povo sírio, portanto não sabíamos se ele estava somente ajudando ou se ia querer algo em troca, o que seria de se esperar em outros lugares. Andamos mais um pouco e ele atravessou a rua na nossa frente. Como ele conseguiu, no meio daquele trânsito caótico, eu não sei. O fato é que ele estava do outro lado.

Vendo nossa hesitação em atravessar, ele simplesmente nos olhou, sorriu e esperou. “Ah, o cara vai querer alguma coisa!”. Atravessamos na base do “te vira negão” e chegamos perto. Nessa hora, ele simplesmente apontou para um imenso portal de pedra e indicou que lá encontraríamos o que queríamos. Após isso, deu uma alargada no sorriso, falou “welcome to Syria...”, e foi embora. Ficamos nos entreolhando, quase emocionados...

Entramos mercado adentro e, a partir daí, tudo foi fantástico! Aleppo entregou aquilo que tínhamos encomendado para Istambul. Sendo praticamente os únicos turistas das ruas do mercado, pudemos caminhar tranquilamente em meio a pequenas tendas de temperos, carnes, roupas, artesanatos... A Du tirava fotos sem problemas, sem queixas. Os mercadores estavam totalmente entretidos por sua clientela, normalmente mulheres em burcas, e não nos notavam tão facilmente. Era raro ouvir outro idioma que não o árabe nos corredores.

Vez por outra, alguém nos gritava e arriscava um “hello, hello! Where are you from?!”. Respondíamos com um “Brazil!” simpático, já aguardando o início da operação de insistência para gastarmos algum com ele. O comerciante, então, abria um imenso sorriso, não disfarçando certo espanto: “Brazil?! Brazil good! Very good! Welcome to Syria!”. E nada mais. 

Rodamos por horas no mercado, aproveitando, principalmente, para fotografar as próprias pessoas – uma riqueza indescritível de roupas, gestos e situações. Um material de primeira linha para as lentes da nossa visada fotógrafa. Aliás, cada vez mais. Um figura, mais malandro que a média, chegou me abraçando, estilo “fala parceiro!”, e pediu para posar para uma foto. Logo depois, sem o menor interesse em olhar o resultado do primeiro click, pulou para o lado da Du e, já com a mão no ombro dela!, mandou: “photo! Photo!”. Gritei em português: “você acha que engana quem, boneco?!”. O cara viu que eu percebi e rolou um riso meio sem graça. A Du fez que não houvesse problema, e a foto foi tirada.

Na verdade, estava claro para mim que essa fissura deles, acima da média, era fruto de uma cultura milenar de repreensão da exposição do corpo feminino. Eram todas boas pessoas, e muito honestas, mas ao se deparar com uma ocidental de mangas de fora (principalmente a Du, que é linda!), eles simplesmente viravam adolescentes – daquela fase onde o garoto monta um plano de uma tarde inteira somente para ver a vizinha passar sem roupa por dois segundos... Agarrando-me a pensamentos desse tipo, fui tentando relevar os malandros. Há de se compreender, pois seria como se uma índia andasse somente de tanga pelas ruas do Centro do Rio. Era preciso entender, mas não era fácil [risos]!

Paramos para almoçar ao lado da principal mesquita da cidade. A comida era boa, mas nada comparado ao tratamento do pessoal. Comemos com uma sensação única, como se tivéssemos rodado esses oito meses somente para estar exatamente ali, naquele restaurante, com aquelas pessoas, depois de termos caminhado por aquele mercado. Nessa hora, olhei para a Du, que fotografava um vendedor de chá, e dei a esse meu momento o nome de “paz interior”.

Saímos do restaurante fazendo, entre apertos de mãos e abraços, a promessa de voltarmos no dia seguinte. Já eram mais de quatro da tarde, então combinamos de entrar na mesquita para algumas fotos e depois voltarmos para o Pezão.

Na entrada, roupas longas para Du e... para mim! Como eu estava de bermuda, coloquei uma espécie de capa também. A Du pegou um modelito bem mais interessante, com o pano envolvendo todo o seu rosto.

Entramos na mesquita e de lá não saímos mais.

O clima de paz e tranqüilidade é avassalador. Parece que alguém está falando para você: “calma... você já chegou”. Fomos andando, a passos bem lentos, e tirando fotos. O número incrível de crianças no pátio interno faz a mesquita parecer uma praça, onde as pessoas se encontram simplesmente para conversar.

Vez por outra alguém nos acenava, com um sorriso sincero nos olhos. Tínhamos o feliz trabalho de ter que procurar bem se quiséssemos achar outros turistas. Vez por outra alguém nos abordava, por curiosidade. A conversa, em inglês bem simples ou através de mímicas, terminava sempre em um “bem-vindo à Síria”.

A Du estava se entretendo, e sendo entretida, por um grupo de crianças, quando começou o Azan. Olhamos em volta, aguardando os seguranças começarem a nos expulsar, mas nada aconteceu. Um imenso tapete verde, que havia sido estendido há pouco em um dos lados do pátio, começava a receber todos os homens islâmicos que estavam na mesquita. Nesse mesmo tempo, as mulheres começavam a se direcionar para o lado oposto. Ninguém vinha nos pedir para sair, então fomos ficando.

Um menino, de seus dez anos, olhou para a Du e fez um sinal com a cabeça dizendo que ela deveria se dirigir para o fundo. Achávamos razoável e nos separamos. Fiquei a cerca de dez metros do tapete, em um dos lados e um pouco atrás, observando. A Du, ao fundo, ainda portava a máquina fotográfica. Começou a cerimônia.

Para nós, foi indescritível. Mais do que somente ouvir os cânticos em coro, ou mesmo ver os interessantes movimentos coordenados de ajoelhar e depois colocar a testa no chão, o que mais me emocionou foi a tolerância demonstrada por eles. Nessa hora comecei a filmar, e mesmo assim não fui incomodado. Que momento incrível...

Parei de filmar e simplesmente apreciei. Percebi então que o objeto estranho à cena, que me causara o espanto inicial, não era a tolerância deles, e sim o meu pré-julgamento de qual seria o tratamento adequado à minha presença. Essa minha falsa impressão, causada pelas distantes e restritas informações da mídia, que insistem em passar a idéia de que a religião islâmica é extremista em sua concepção, me fizeram achar que um ocidental não-islâmico não poderia presenciar e registrar uma oração. A distância desse conceito ao que eu estava vendo era infinita. Eles não estavam fazendo nada de errado, assim como eu. Nessa hora, um senhor que eu tinha antes apertado a mão, virou de lado, me viu, e voltou a sorrir. Fui totalmente pego de surpresa, quando esperadas palavras de repulsão se converteram, magicamente, em gestos de harmonia. Nessa hora, eu senti falta da Du ao meu lado.

Assim que a oração acabou, meus olhos procuraram os dela. Ela estava ainda mais emocionada, e confessou que chorou. Andamos mais um pouco pelo pátio, meio anestesiados, e percebemos que a noite já caíra.

Saímos, meio atordoados, tentando achar o caminho de “casa”. Começamos a andar pelas ruas, tentando ver se podíamos fazer como a Cristal nos indicou, ou seja, pegar também uma van para voltar, ou se apelaríamos logo para o táxi. A van nos pareceu mais emocionante, então começamos a caminhar, tendo sempre o táxi como segundo plano.

Andamos meio perdidos até uma rua um pouco maior e bem mais promissora. Tínhamos em mãos um papel onde a Cristal escreveu em árabe o nome do lugar onde o camping ficava enfiado.

Paramos em uma pequena venda, para comprar água, e aproveitamos para pedir informações. Em um inglês bem simples, mas pelo menos existente, o comerciante tentou nos explicar o melhor a se fazer. Diante de nossos olhares bem confusos, ele virou para o lado e falou para os demais da venda, em árabe, o que eu traduzi como “rapaziada, segura as pontas aí que eu vou dar um passeio e levar eles lá”. Sempre sorrindo e nos mostrando as redondezas, ele nos levou alegremente por mais de quatro quadras até um ponto de vans. Ele ainda nos ajudou com a negociação, pois não havia ninguém indo para as bandas do Pezão. Conseguimos uma van privé, pagando cinco vezes mais do que o normal, mais ainda assim menos da metade de um táxi.

Achamos bom negócio e embarcamos, não sem antes nos despedirmos e agradecermos o vendedor que nos ajudou. Ele sorriu e acenou em despedida.

Sentamos bem na frente, para tentar um papo com o motorista (e pedir para ele ir mais devagar!), mas sem muito sucesso. Não havia única uma palavra em comum entre a gente.

Mais à frente, um garoto fez sinal para a nossa van “privada”. O motorista deu uma meio reduzida, e fez uma cara de pidão pra gente. Olhamos pra ele e dissemos com gestos “manda ver! Bota a rapaziada pra dentro!” – o cara lotou a van!

Como não sou bobo, peguei a Du e fui lá pro final. Coloquei-a entre mim e a janela e fiquei olhando a garotada na van, uma cena do cotidiano bem típico de qualquer lugar do mundo. O motorista simplesmente voava baixo! Com o requinte da escuridão da noite, a montanha-russa tinha se transformado em um assustador trem-fantasma. Em uma descida, olhei o velocímetro do GPS de mão que estava comigo e mostrei pra Du: exatos 104 quilômetros por hora! Pelamordideus!

Aliás, o pequeno aparelho recebeu o troféu de herói da noite! Sua precisão nos fez acertar em cheio o camping. Se não fosse ele, acho que estaríamos até agora rodando a mais de cem por hora na periferia de Aleppo na tentativa de achar nosso destino.

Chegamos ao Pezão cheios de novidades! Tínhamos passado meio dia na Síria e parecia uma semana. Fomos dormir ainda incrédulos.
O dia seguinte estava novamente reservado para o centro antigo da cidade. Após o café-da-manhã, lá fomos nós pra estrada. Cruzamos os dedos e começamos a esperar por uma van.

O dono do camping apareceu e, junto com ele, uma van vazia indo no sentido contrário. Por coincidência, outra van parou na nossa frente naquele mesmo momento, no sentido certo. O dono do camping fez um sinal com a cabeça, dando a entender que valia a pena ir com o amigo dele, pois logo ele estaria fazendo o retorno e indo em direção ao Centro. Olhei para a van que ia no sentido certo... Setenta e quatro homens e nenhuma mulher... Na van do sentido contrário, só o piloto. “Alguém aqui tá com pressa?!”, pensei, já entrando com a Du na van vazia.

Fomos lá pros últimos bancos e fiquei relaxado, pois sabia que teria paz até o destino final com a Du no fundo comigo. Quase gritei “acelera, motorista! Tá com o freio de mão puxado, ô roda-presa?!”. Estava feliz.

Chegamos, em curtíssimos cinco minutos, a uma pequena cidade e demos meia-volta. O motorista de van encontrou seus colegas no ponto final e fiquei observando o papo deles. Realmente, o clima entre eles era muito descontraído. Tudo muito empoeirado, tudo muito simples, mas não parecia faltar nada.

Saímos, agora sim, na direção de Aleppo. Passamos novamente em frente ao camping e começamos a coletar os passageiros. Quando entrava um caboclo, ele dava o já familiar olhar para nós, quase assustado, tipo “caraca! Uma mulher quase nua na van!”, e ficava olhando para as cadeiras vagas, procurando um bom lugar pra ficar olhando. Eu, sorridente, pensava: “Te vira aí pelos bancos da frente, seu pastel!”. Cara, os sírios me fizeram ficar ciumento...

O mais engraçado foi quando sentou um cara ao meu lado. Ele me olhou, olhou pra Du, e me deu uma flor! Como diria minha mãe... “Tudo muito esquisito...”. Sorri e agradeci, ouvindo os risinhos de deboche da Du.

Chegamos novamente ao centro antigo e passamos pelo mesmo portal. Fomos caminhando pelo mercado, como se nunca tivéssemos estado lá.

Continuamos caminhando e curtindo. Chegamos, quase ao meio-dia, à Citadel, a antiga fortaleza da cidade – as primeiras construções da fortificação datam do século II. Ficamos um bom tempo observando e fotografando esse impressionante local.

Saímos de lá e fomos almoçar. Não hesitamos em ir ao mesmo restaurante e falar com as mesmas pessoas do dia anterior. Chegamos lá e fomos novamente muito bem recebidos. Na saída, a Du foi tentar fotografar de novo o dono do restaurante, que trajava umas roupas bem tradicionais e usava uma longa barba branca. A Du apontou a lente para a mesa dele e recebeu um sorridente sinal positivo dele para a foto, só que já saindo da cena. Ela olhou-me frustrada e descemos. Passamos por perto dele e ele brincou que a mulher dele não o deixa ser fotografado. Começamos a conversar e vi que ele tinha um exemplar do Alcorão. Pedimos para fotografá-lo e ele consentiu, desde que não saísse na foto. A Du tirou a foto com o Alcorão nas mãos dele e fizemos questão de mostrar o resultado, para ele ter certeza de que havíamos respeitado a sua condição. Ele olhou o resultado satisfeito, e então nos convidou para ir ao seu escritório para fotografar uma espécie de edição de luxo do Alcorão. Entramos no escritório e, além de fotografar o livro, conversamos um pouco.

Após esse tempo, ganhamos a simpatia dele, que nos falou “agora, somos amigos! Podemos tirar uma foto juntos!”. Achamos muito legal e descemos para tirar a foto. Vimos nos olhares dos funcionários do restaurante que aquilo realmente não era muito corriqueiro. Despedimo-nos, com votos de que, se precisássemos de algo, podíamos procurar por ele. Sabíamos que eram votos sinceros...

Entramos novamente na mesquita. A tarde foi novamente repleta de bons momentos e muita paz. Ficamos bastante tempo conversando com um simpático casal, vindo da Tunísia, que estava em lua-de-mel. Sameh e Hedi mostraram-se pessoas fantásticas e tivemos ótimas conversas sobre como funciona o islamismo em outras partes da região.

Chegou a hora da oração e Hedi, junto com um voluntário islâmico que também ficou bastante tempo conosco, me convidou para fazer com eles uma parte da preparação pessoal, através de um ritual de lavagem. Foi muito interessante.

Vimos, novamente, toda a cerimônia e aproveitamos para fazer mais fotos e filmagens. Na saída, nos despedimos de nossos amigos e fomos para o ponto das vans.

Encontramos o mesmo motorista, com o mesmo sorriso receptivo, o mesmo inglês inexistente e o mesmo pé pesado. Partimos para o camping e renegociamos o preço do transporte. Sabíamos que ele ia lotar a van no caminho!

Chegamos rápido, óbvio!, e não demoramos a arrumar tudo para dormirmos um pouco mais cedo. A visita a Aleppo estava terminando. Antes da chegada, não imaginávamos o quanto seria emocionante... E ainda tínhamos toda a Síria pela frente.

Rumamos sul, no dia seguinte, em direção a um famoso castelo, chamado Krac des Chevaliers. No caminho, passaríamos por umas ruínas romanas, chamadas Apamea.

Antes, paramos para almoçar em uma cidade minúscula, quase uma única rua. Avistamos a famosa televisão de cachorro, cheia de galetos, e não pensamos duas vezes.

O pessoal nos recebeu muito bem e preparou o lauto almoço: um frango inteiro, pão sírio e uma salada meio mandraque. O pessoal falava muito pouco inglês, então a comunicação era arrastada. Pedimos talheres, o que causou imensa surpresa. Após recebermos dois pares de garfo e faca velhacos, começamos a destrinchar o frango. O cara do lugar não se conformava com a nossa tarefa de usar os talheres. Ficava, com mímicas, dizendo que era para destrincharmos o frango com a mão. Tentávamos dizer que estava tranquilo, que no Brasil fazíamos assim mesmo, mas ele não agüentou: levantou, sacou a mão no nosso frango, levantou o pobrezinho a quase um metro de altura e começou a despedaçá-lo entre os dedos. Ficamos surpresos, mas achamos a cena muito engraçada. Ele tacou então um pouco do frango no prato da Du, um pouco no meu e voltou para sua cadeira, satisfeito da vida. Olhamo-nos e rimos: “até que funcionou...” percebendo os pedaços de frango estraçalhados em cada prato.

Voltamos para a estrada e fomos na direção de Apamea. Na entrada da cidade, fomos abordados por um motoqueiro que queria nos vender umas moedas antigas. As moedas eram realmente muito velhas e, sujas de areia, pareciam coisa rara. O preço pedido por ele era baixo e, depois de alguma negociação, compramos duas por cinco dólares. Quando estávamos a caminho, terminando de pagar, apareceu mais um vendedor e a mesa de negociações, na porta do Pezão, ficou mais tensa. O outro malandro também queria nos vender umas moedas e, com a nossa recusa, ele começou a me perguntar se o primeiro tinha me vendido alguma antiguidade, pois, se sim, era crime – e ficava fazendo um sinal de grade com os dedos indicadores e médios das duas mãos. “Essa é boa!”, pensei. “Comprar dele, pode. Mas do outro é crime! Que cara malandro...”. Saí negando que tivesse comprado qualquer coisa e nos dirigimos para a entrada das ruínas.

Antes, falei pra Du: “é melhor colocar essas moedas lá trás, pra não dar problema”. Ao mesmo tempo, nos veio à cabeça a idéia de que as moedas poderiam ser mesmo raras... “Já pensou?!”, exclamamos. Guardamos as moedas na mala e fomos às ruínas. Lá dentro, e em diversos outros locais, mesmo à frente, na Jordânia, vimos essas moedas oferecidas em tudo quanto é canto! “Raras... é ruim, hein?!”, rimos juntos.

Os mais de um quilômetro de colunas romanas em ruínas nos entretiveram por algumas horas. Conseguimos passear por elas calmamente, pois a quantidade de turistas não era grande. Tiramos boas fotos e fomos embora.

Nosso destino era, finalmente, Krac des Chevaliers. Sabíamos de um camping que ficava situado à beira do castelo, e fomos para lá. O caminho foi tranquilo e repleto de novas paisagens e pequenas cidades.

Achamos o camping ao final da tarde. Na chegada, tomamos um susto com a quantidade de campers estacionados. O camping estava lotado! Na verdade, a maior parte era de um único grupo, vindo da Holanda. Optamos por ficar, então, em um dos quartos, pois o preço era praticamente o mesmo do camping.

Certa hora, fomos ao Pezão para arrumar umas coisas e, principalmente, tirar da geladeira um frango que estava pra lá de Marrakesh. O frango realmente estava fedendo um bocado!

Enquanto eu pegava o frango, e a Du estava vendo alguma outra coisa, fomos literalmente cercados! Os holandeses, que estavam caminhando em comboio em direção ao restaurante do próprio camping, pararam no Pezão e começaram a fazer perguntas. Com o discurso de sempre, já na ponta da língua, comecei a contar a história da viagem para uma meia dúzia: de onde viemos, onde já tínhamos passado, para onde íamos... Olhei para a Du e ela estava também se virando com outro lote de curiosos. Comecei a sentir um cheiro estranho e imaginei que um dos holandeses tivesse dado uma “relaxada”. Quando respirei melhor, lembrei: o frango! Eu estava segurando o frango o tempo inteiro! Pedi desculpas ao Pezão, joguei o frango lá dentro e fechei a porta. Quinze minutos depois, o pessoal seguiu para o jantar e eu falei com a Du: “sinistra a blitz!”. E ela: “nem me fale! Um cara ficou indignado porque eu não consegui explicar porque não íamos pra China... E o outro quis enfiar a cara no Pezão para ver os equipamentos e eu fechei a porta na cara dele, porque tá fedendo demais lá dentro!”. Rimos, limpamos a geladeira, jogamos o frango fora e fomos dormir.

Nossa próxima atração era uma das mais famosas da Síria: as ruínas de Palmyra.

Saímos de Krac des Chevaliers logo pela manhã e rumamos para o oeste. O clima de deserto novamente apertou e garantiu o bom tempo e as boas paisagens. Estávamos andando, no nosso ritmo de sempre, quando fomos ultrapassados por um carro antigo. Nada de mais, continuamos nossa rota e nossa música. Mais à frente, o carro estava parado na beira da estrada e seu condutor, um senhor em roupa de beduíno, nos acenava para que parássemos. Como estávamos na Síria, sentimos a segurança suficiente para pararmos o carro.

Começamos a falar com ele, em um inglês quase inexistente, quando saiu sua esposa. Ficamos por alguns minutos na tarefa de explicar de onde éramos e para onde íamos, quando ele nos convidou para o almoço. Não aceitamos de imediato, mas, com a insistência deles e com o avançar da hora – eram quase uma da tarde – acabamos aceitando. Seria, no mínimo, interessante.

Começamos a segui-los e, em poucos minutos, chegamos a uma casa simples, que ficava em uma rua simples, de uma simples e empoeirada cidade do meio do deserto.

Entramos ainda com um pouco de cerimônia e fomos levados a uma grande sala, que era ornamentada com imensos tapetes e uma mesa baixa, além de diversas almofadas ao longo dos cantos das paredes. O lugar era extremamente típico e característico – uma sensação diferente de se entrar em um restaurante ou hotel com uma decoração dessa região. Estávamos realmente freqüentando um espaço autêntico.

Nessa hora, chegou outra mulher - conseguimos entender que era irmã da nossa anfitriã. Com ela, chegaram as primeiras crianças, acho que umas quatro. Era sábado, dia sem escola para eles, então foi uma questão de tempo até a sala estar com mais umas três. Conseguimos, na base da mímica, entender que nossa anfitriã tinha sete filhos, e sua irmã, nove! Não demorou muito e mais crianças chegaram. Apresentamo-nos todos, mas, pela quantidade e diferença dos nomes, confesso que não me lembro de nenhum. Ao patriarca, dei o apelido de “Xeique”.

A falta da linguagem dificultava um pouco a tarefa de dar uma quebrada no gelo, pois a conversa acabava um pouco arrastada, com vários minutos sendo usados para entendermos palavras ou perguntas simples. Tivemos a idéia, então, de pegar o micro da Du, a máquina fotográfica e a filmadora. A fórmula surtiu efeito em poucos minutos. Começamos a mostrar fotos e vídeos da viagem, o que garantiu as risadas e a descontração, principalmente das crianças. Quando a Du pegou a máquina, a farra aumentou. Como sempre, todos queriam ser fotografados e aparecerem no visor da máquina.

Com a Du entretendo a molecada, eu continuei na tentativa de conversar com o dono da casa. Entendi que ele trabalhava com transporte de combustível e que seus filhos maiores estavam na estrada com uma carreta. Vi os retratos dele, de um senhor mais velho e de um cara mais novo na parede. O mais velho era seu pai, já falecido, e o mais novo o seu primogênito, igualmente falecido em um acidente de carro.

Nessa hora, a molecada, que olhava o micro com a Du, deu um berro! Eles estavam vendo o filme das raias de Belize e, quando a Du apareceu de biquíni, foi uma gritaria. Os meninos mais velhos, de uns dez anos, viraram para o pai e falaram algo em árabe, o que fez ele dar uma boa levantada nos olhos. Imaginei logo a frase: “pai! Perdeu! Ela apareceu aqui quase pelada!”. Olhei para ele e voltei a tentar a conversar, no seguinte recado: “perdeu mesmo, xará! Deu azar. Agora vamos voltar pra nossa mímica aqui, que tá maneira...”.

A comida chegou. Eram uma pasta de berinjela, ovos mexidos, um queijo pastoso, azeitonas e umas frutas em calda. O ritual era pegar o pão sírio e sair salpicando cada uma das iguarias. Estava especialmente bom. Principalmente a tal fruta em calda que, no final, combinada com o queijo pastoso, me fez comer quase um pão inteiro a mais. A Du também adorou esse doce.

Depois do almoço, a Du foi fazer um tour pela casa e, pelo que ela me contou e pelas fotos, foi divertidíssimo. A criançada já estava totalmente à vontade, e os berros delas eram o que mais se ouvia.

Continuei o papo com Xeique e ele, como sempre, tentava ser agradável. Mostrou-me sua arma, uma nove milímetros belga, bem antiga e interessante. Tive, desde garoto, um convívio pacífico com armas, um dos passatempos prediletos do meu pai, então manuseei a arma, descarregada, com certa intimidade, o que surpreendeu um pouco o Xeique.

Ele, em certo momento, me pediu para ver o micro. Peguei-o e comecei a mostrar o nosso roteiro. Ele se interessou, mas, em certo, momento, balbuciou a palavra “vídeo”. Abri os vídeos e mostrei alguns. Ele fitava o monitor, sem mostrar grande interesse. Quando ele me pediu pra trocar o vídeo, foi que entendi! Ele queria ver o vídeo da Danusa de biquíni! Virei para ele, em português, e falei: “Ah!... Tá querendo ver a Danusa de biquíni, né?! Não vem não... Você vai ver é o filme do vulcão Pacaya, lá na Guatemala. Todo mundo tava cheio de roupa por lá!”. Não consegui esconder a gargalhada.

Coloquei o vídeo do Pacaya para ele e para um dos seus filhos mais velhos, o mais esperto deles. Xeique não gostou e se levantou para rezar... Continuei mostrando para o garoto, que acabou me fazendo companhia enquanto seu pai rezava. Ele se mostrou muito curioso e esperto, pegando todas as minhas tentativas de comunicação com espantosa velocidade. Vi nos olhos dele a admiração por estarmos tão longe. Ele me deu de presente uma fita de plástico que carregava no pulso e eu retribuí com um chaveiro do Brasil que o Douglas nos trouxe em Budapeste. Os olhos deles brilharam.

Xeique acabou a reza e pedi para chamarem a Du. Era hora de irmos. Tínhamos ficado quase três horas em companhia da grande família.

Fomos para fora e começamos a guardar as coisas no carro e preparar a saída. Antes, preparamos uma foto da Du com a criançada em cima do Pezão. Nisso, Xeique deu o troco na minha regulada do filme do biquíni! Entrou na foto da criançada e sentou a mão na perna da Du! “Que cara de pau!!”. Tirei correndo a foto e simplesmente saí dali. Achei melhor não correr o risco de estragar aquela tarde, que tinha sido bem legal. Mas, que fiquei puto, fiquei.

A saída do Pezão foi sensacional, com a molecada correndo atrás da gente até sumirmos na esquina. Foi uma tarde emocionante, onde conseguimos conhecer mais de perto uma família de hábitos tão diferentes dos nossos.

Chegamos a Palmyra e tratamos de arrumar um hotel. Os baixos preços são convidativos e, como queríamos ficar por lá com mais calma, um ar condicionado viria bem a calhar.

Logo depois de colocarmos nossas bagagens no quarto, fomos às ruínas para conhecê-las e aproveitar a luz baixa para as primeiras fotos.
As ruínas são fascinantes. O mais impressionante é que o parque arqueológico é totalmente liberado à visitação. Sem guaritas, sem portarias, sem bilheteria. Basta chegar e caminhar pelo local. O ar estava bastante empoeirado, muito comum nessa época, e atrapalhou um pouco as fotos mais distantes. Com o cair do sol, fomos a uma lanhouse e depois voltamos para umas fotos noturnas.

No dia seguinte ficamos um pouco pelo hotel. Chegamos a colocar o despertador para bem cedo, para pegarmos o nascer do sol e sua boa luz para fotos. Mas a poeira e o cansaço nos desanimaram, então voltamos a dormir. É algo que aprendemos a conviver nessa viagem: realmente não podemos seguir no mesmo ritmo dos turistas de poucos dias, mesmo quando estamos em locais espantosamente interessantes, como o caso de Palmyra. Se for preciso descansar, temos que parar. Mesmo que isso signifique abrir mão de ver tudo em detalhes. Após mais de oito meses na estrada, tínhamos aprendido a controlar o ritmo e curtir os lugares de uma forma diferente e mais calma.

Nesse ritmo, saímos no meio da tarde para almoçar e tirar mais fotos. Caminhamos tranquilamente pela pequena cidade, cumprimentando as pessoas. A areia em suspensão criou, dessa vez, um efeito no sol poente totalmente diferente do que tínhamos visto até agora. Toda a linha do horizonte possuía um tom alaranjado e elegante.

Após esses dias no deserto, era hora de voltarmos à civilização. Depois da passagem por Aleppo, tínhamos criado grande expectativa em relação à capital, Damasco. 

Chegamos a um camping, novamente enfurnado na periferia da cidade, e estacionamos. Para variar, o pessoal era gente finíssima. Novamente, o camping estava lotado.

A cidade de Damasco é imensa, então o dono do camping nos convenceu a ir de táxi, pois a volta seria cruel demais. Chegamos ao centro antigo e entramos no mercado. O mercado era bem mais imponente que o de Aleppo, possuindo um imenso pé direito. Acima, as vidraças faziam entrar os raios de sol que, com a leve poeira do ambiente, criaram um novo efeito de luz belíssimo. Nossa fotógrafa não perdeu a oportunidade e fez fotos impressionantes.

Andamos por todo o mercado e pelas ruas da cidade em um passo lento e agradável.

Almoçamos e visitamos a famosa mesquita Umayad, uma das maiores e mais bonitas do mundo. Impressionamo-nos, mas não muito. Tínhamos passado bastante tempo na de Aleppo, e a sensação em nós não foi tão devastadora. Saímos mais cedo e fomos de volta ao Pezão. O dia seguinte era de viagem e de fronteira. Era chegada a hora de ir à Jordânia!

Não há como resumir em poucas palavras nossa experiência na Síria. Foi um completo choque entre nossas expectativas iniciais e o que acabamos vivendo de fato. Mais do que belas ruínas, o que ficou marcado em nós foi a alegria e a hospitalidade desse povo. Mais do que as novidades à venda nos mercados, as figuras humanas compuseram a parte mais interessante das ruas. Para mim, é simples assim: vá à Síria! Você será bem-vindo!







 
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