A interminável única semana na Venezuela E-mail
Qua, 14 de Abril de 2010 10:47
21 a 29/03/2010

A travessia da América do Sul pra a América Central tem uma peculiaridade para quem viaja de carro: não há como entrar por estradas. Não há estradas! Existe a necessidade de colocar o carro em um navio e transportá-lo ao Panamá.

É um pouco frustrante, pois distância é muito curta para todo o trabalho de despacho. Mas, vamos em frente. Nossa primeira ideia, similarmente ao que fez o pessoal do CYD, seria enviar do Equador. Tínhamos algum receio de atravessar a Colômbia e pouca vontade de andar pela Venezuela. Preferiríamos ir direto à América Central e aproveitar esse tempo por lá. Por que então cruzamos a Colômbia e, agora, a Venezuela? A resposta está em um documento muito importante para essa viagem: o Carnê de Passagem (Carnet de Passage en Douane - CPD)! Infelizmente, esse documento, que seria o “passaporte” do Pezão, deixou de ser emitido no Brasil. Possivelmente, uma mistura de má organização e mau uso em processos de importação fez com que esse documento desaparecesse no país. Pesquisando outras viagens e fazendo alguns bons contatos, acabamos descobrindo que o CPD poderia ser emitido na Venezuela, através do Automóvel Clube local, sendo que bastaria o carro dar entrada oficialmente no país. Daí então a viagem para cá! Terra de Hugo Cháves! Estávamos bem apreensivos sobre o CPD, pois sempre me pareceu estranho um país emitir um documento sobre importação e exportação temporária a respeito de um bem de outro país. Parece-me algo de curta duração... Mas, novamente, vamos em frente! 
 
A viagem à Colômbia acabou nos surpreendendo e valendo a pena, então, quem sabe o mesmo não aconteceria na Venezuela?

O começo da viagem não foi dos mais espetaculares, já que acabamos tendo que ficar uma tarde de domingo inteira em uma cidade quase desértica. San Antonio não tem nenhum atrativo. Até para comer à noite foi complicado. Não havia restaurante no hotel e não estávamos com o Pezão abastecido de matéria-prima pra preparar algo. "Será que entregam algo no hotel?". A cara de “esses caras tão achando que estão em Marte!” da recepcionista do hotel nos deu a resposta imediatamente após a indagação. Estávamos a quinhentos metros da fronteira e simplesmente não queríamos tirar o nariz do hotel à noite. Principalmente com o Pezão. Ele estava tranquilo, dormindo nos fundos do hotel, e não queríamos sair pra desfilar com nossa espaçonave chamadora de atenção. Resolvemos encarar e sair a pé. A recepcionista, com uma certa má vontade, provavelmente porque a tínhamos tirado da sua confortável posição deitada no sofá e à frente da televisão por duas vezes seguidas, nos disse para darmos uma andada que encontraríamos algo. Entre uma rosnada e outra, ela tentou descrever um lugar com comida, mas desistimos de entender e fomos assim mesmo, com as antenas ligadas. Muito escuro. Já no primeiro minuto de caminhada, passa um moleque empinando o que parecia ser uma espécie de mobilete. A Du tomou um susto ferrado. Eu, na verdade, fiquei um pouco mais tranquilo. Se havia espaço pra molecagem, não devia ser tão perigoso. Andamos uns seiscentos metros, e estava um deserto só. Escuro e vazio. Tudo fechado. Só tínhamos passado por uns trailers de cachorro quente e hambúrgueres, com tal aspecto, que faziam os do Maracanã parecerem restaurantes finos. Só então percebemos que eram esses trailers que a recepcionista tentara descrever! Paramos em um para dar uma olhada. Vimos um figura preparando um sanduba, e foi o suficiente pra arriscarmos mais um pouco de caminhada. Vimos de longe uma luz! Beleza! Chegamos e era um lugar que vendia frango. Arrumado! Uma daquelas “televisões de cachorro” imensa na porta e umas mesas estilo lanchonete americana. É aqui! Entramos na hora. Recebemos o cardápio, que continha, disparado, as piores fotos de comida que já vimos! Umas carnes totalmente esturricadas! Na verdade, foi o mais feio e totalmente fiel cardápio que já visto. As comidas fotografadas certamente foram servidas... Bem, vamos de prato principal. Vamos de frango. Pedimos um peito pra cada, com alguns acompanhamentos. Enquanto esperávamos, a garçonete colocou na mesa um prato com uns guardanapos e plásticos não identificados. Pareciam aquelas toucas pra tomar banho... Que isso!?! A Du pegou uma na mão e aí realizamos! Eram umas luvas de plástico descartáveis! Sensacional! Não havia garfo e faca! Olhamos em volta e todas as pessoas comiam com as mãos, devidamente protegidas pelas luvas. A Du não agüentou e começou a rir. Ficou imitando um casal fazendo o primeiro encontro naquele restaurante. Trocando carícias entre luvas engorduradas. Nada contra comer com a mão. Não imagino uma picanha, preparada pelo meu amigo Giba, sendo servida devidamente fatiada no prato corrido e alguém pedir talheres. Agora, um restaurante inteiro adornado por luvas de plásticos, foi bem mais interessante. Mandamos ver no frango! Experiência é isso aí! Quero ver na Índia...
 
Na segunda-feira, bem cedo, fomos à alfândega pra registrar logo o Pezão e recuperar o tempo perdido. Na verdade, não seria tão fácil. Chegamos lá e recebemos uma lista de documentos que deveríamos apresentar. Entre eles, um seguro. Perguntamos a respeito e saímos pela cidade para conseguí-lo. Achamos um e morremos num cascalho. Tivemos que fazer um seguro de automóvel válido por um ano! Patético! Retornamos correndo para conseguir chegar de volta à alfândega antes de eles fecharem para almoço. Chegamos cinco minutos antes e tivemos que implorar para o fiscal, meio de má vontade, nos liberar. Quando terminou, cerca de quarenta minutos depois, o cara ainda nos avisou que precisávamos passar na polícia, para mais um carimbo! Ê terrinha... Fomos lá falar com a querida polícia e conseguimos o tal carimbo. Agora, partiu!
 
Atravessamos duas serras, com asfalto péssimo, muito trânsito e continuamos na direção de Barinas. Após as serras, uma das únicas coisas boas da visita à Venezuela: a viagem voltou a render. Não necessariamente pela boa conservação das estradas ou grandes investimentos recentes, mas pelo relevo. Totalmente plano. Tínhamos esquecido, no Equador e na Colômbia, o que era colocar a quinta marcha e passar horas a noventa e cinco por hora. Pro Pezão, fantástico!
 
Acabou ficando muito tarde e, por causa de mais um engarrafamento, abortamos Barinas. Paramos em La Acequia, que já era uma cidade menos assombrada do que San Antonio. No dia seguinte saímos cedo. Seria bom abastecer. Sabíamos que o combustível na Venezuela era muito barato, porém, depois de ouvir alguns relatos sobre as dificuldades de outros viajantes em conseguir abastecer perto da fronteira, não bobeamos e entramos com uma certa autonomia. A questão é que o combustível é tão barato, tão barato, que há um imenso tráfico para a Colômbia, drenando todo o combustível disponível perto da fronteira. As filas nos postos localizados até aproximadamente duzentos quilômetros de distância da Colômbia são assustadoras! Uns cinqüenta carros, pelo menos! Como já estávamos com quase quatrocentos quilômetros rodados na Venezuela, conseguimos um posto com somente um caminhão na nossa frente. Depois de uma frustrada tentativa de enrolação do frentista, que não zerou a bomba e tentou me cobrar o abastecimento de mais de duzentos litros, descobri o quanto vale o litro do Diesel na Venezuela: $0,048 bolívares fuertes. Isso mesmo! Menos de meio centavo! Como um dólar vale 4,6 Bf, faça a conta. Colocamos perto de oitenta litros, acho (culpa do picareta do frentista), e eu dei pra ele $3 Bf, ou seja, menos de um dólar! O Diesel não é vendido na Venezuela, é doado!
 
Paramos para dormir em Maracay, e já na quarta-feira estávamos em Caracas. Chegamos na hora do almoço, tempo suficiente para achar um hotel e ir ao Automóvel Clube da Venezuela. Ficamos aguardando na recepção do ACV, com um medo danado de ouvir a frase “no hacemos mas para carros brasileños”. Porém, fomos muito bem recebidos pelo Sr. Hugo Sojo e, em cinco minutos de conversa, já sabíamos tudo o que precisaríamos para o CPD. Alívio! Nos prometeram o CPD para terça-feira da semana seguinte, e nos foi lembrado do feriado da semana santa, ou seja, eles trabalhariam somente até quarta. Sem problemas! Estávamos também esperando um guia turístico que meu irmão Alexandre tinha mandado pra Caracas e que chegaria na segunda-feira à noite. Tranquilo. Na quinta-feira pela manhã voltamos ao ACV para fazer o pagamento do CPD, cerca de trezentos dólares. Quando chegamos, começou a aparecer a figura de Hugo Cháves pra nos aporrinhar. Ele simplesmente decretou feriado compulsório para toda a semana seguinte, por causa da falta de energia! O Sr. Hugo, o do ACV, nos olhou com pesar e disse que eles só poderiam voltar ao trabalho na outra segunda. Ficamos boquiabertos! O que vamos fazer em Caracas durante dez dias?! Diante do nosso desespero, ele se prontificou a fazer a imensa gentileza de emitir o CPD em um dia, nos entregando no final do expediente da sexta-feira! Que espetáculo! Saímos de lá satisfeitos, e fomos correr atrás de tentar resgatar o guia que Alexandre mandara.
 
Depois de uma ida na Fedex de Caracas e alguns telefonemas, percebemos que não teria jeito, e que o guia realmente não conseguiria ser recebido antes de dez dias. Ficamos xingando Hugo Cháves por uns quinze minutos! Realmente foi uma grande infelicidade ao povo venezuelano a assunção do poder por essa figura deprimente. Assim que entramos no país, vimos a notícia de que ele mandara cortar a luz de oitenta empresas que não estavam reduzindo o consumo de energia. Depois, descobrimos que o fuso horário, de uma hora e meia em relação à Brasília, foi coisa recente de Cháves para não seguir o ajuste de horas inteiras imposto pelo “imperialismo americano”! Patético! Tristes com a perda do guia, pensamos: “pegamos o CPD na sexta-feira à tarde e partimos de Caracas já no sábado!”. Tínhamos originalmente a idéia de tentar mandar o carro para o Panamá de Puerto Cabello, Venezuela, mas a falta de agilidade e mau atendimento dos venezuelanos, junto com o feriado prolongado, nos fez ter a idéia de voltar à Colômbia e mandar de Cartagena.
 
Dito e feito! Pegamos o CPD e partimos no sábado de volta à Colômbia. Não pelo mesmo caminho. Desta vez iríamos por cima, perto do Mar do Caribe. O feriado acabou com nossas expectativas de conhecer as boas praias desta região da Venezuela. Tudo estava cheio e caro. Não nos importamos e passamos direto. Teríamos outros países para mergulhar no Caribe.

Dormimos em Coro e depois Maracaibo. Antes, a uns quinhentos quilômetros da fronteira, parada para abastecer! Achamos um posto de abastecimento, digo, de doação de combustíveis, sem nenhuma fila para Diesel. Inclusive o frentista parecia até meio entediado. Colocamos Diesel até a orelha do Pezão, aproveitando os dois tanques extras instalados. Achatamos cento e vinte litros dentro dele. Com cerca de quarenta que ainda restavam, ficamos próximos dos cento e sessenta litros. Daria pra rodar uns mil e quinhentos quilômetros. Na hora de pagar, aquele momento incrível! Cinco bolívares fuertes e uns quebrados! Juntei umas moedas com a Du e demos seis pratas pro cara. Um dólar e pouco por cento e vinte litros! Que mágica é essa?
 
Chegamos a Maracaibo no domingo e ficamos por lá, já sabidos da aversão da alfândega venezuelana por domingos. Aterrissamos em um hotel e fomos informados que não poderíamos fazer o check-in porque em cinco minutos eles ficariam sem luz. Como assim? Explicaram-nos, então, que cada parte de cidade é apagada diariamente por duas horas, em diferentes momentos. Racionamento.

Na segunda, partimos para a fronteira. Na saída da Venezuela, foi razoavelmente rápido. O interessante é que pagamos centro e trinta bolívares fuertes, ou o equivalente a quase três mil litros de Diesel!, para sair do país! Tem seu lado cômico.  Na entrada da Colômbia, caos! Não na imigração, que demorou dez minutos, mas na entrada do Pezão. Diferente da passagem do Equador para a Colômbia, na qual o carro equatoriano tem livre passagem e somente nós precisamos fazer papelada, na passagem da Venezuela para a Colômbia a história é outra. Todos os carros venezuelanos têm que cumprir o mesmo procedimento que o Pezão. Ou seja, fila, senha, espera. Descobrimos que uma maneira rápida seria usar o CPD. Mas resolvemos encarar a fila, pois o CPD tem uma única falha, só permite dez processos de entrada e saída, o que é pouco, e tínhamos que poupar.

Encontramos uma família muito boa gente na fila e batemos altos papos. O pai e as crianças eram de dupla nacionalidade, venezuelana e colombiana, e falamos um bocado sobre os dois países. O que mais me impressionou na Venezuela foi a falta de uma economia. Ele citou alguns exemplos e o mais marcante, pra mim, foi sobre o cartão de crédito. A Venezuela simplesmente não emite cartão internacional, pois não tem crédito em nenhum país do mundo. E o cartão doméstico tem um limite, imposto pelo governo, de dois mil e quinhentos dólares... por ano! Ele nos contou de manobras que precisa fazer para viajar para os Estados Unidos, por exemplo, e conseguir sacar dinheiro por lá.
 
Depois de três horas de espera, pois além de tudo descobrimos que o bom papo estava nos custando furadas imensas de fila, recebemos nossa papelada. Ficamos somente uma semana na Venezuela, o que foi muito pouco comparado com outros países. Mas, diferente da Colômbia, a Venezuela confirmou nossas expectativas e foi uma parte chata da viagem. Tudo muito caro, provavelmente por conseqüência de uma carga tributária exagerada para tapar o buraco do subsídio do combustível, um povo desanimado e descrente no futuro (isso foi facilmente verificado por nós em alguns péssimos tratamentos que recebemos), e uma estiagem de quase um ano que está causando um imenso desconforto à população. Quem sabe, se tivessem ocorridos nos últimos anos mais investimentos em infra-estrutura, o país não estaria passando por isso mais facilmente? Não estamos desconsiderando algumas belezas naturais da Venezuela, como o arquipélago de Los Roques, por exemplo, que conhecemos em outra viagem e indicamos a qualquer um que goste de praia e mergulho, mas nossa visita tinha fins mais práticos. Nossa fotógrafa não encontrou ânimo para registros mais profundos. Realmente não havia muito o que fotografar, então a poderosa Nikon entrou em um período de férias!

Entramos novamente na Colômbia, bem animados. Planejamos algumas visitas, no caminho para Cartagena, a praias que pareciam ser bem legais. 

Acho que o único ponto de coerência do governo venezuelano foi o pagamento da saída. Realmente teve mais sentido pagar para sair do que para entrar. Ao povo deste país, desejamos mais sorte no futuro.


 
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